sábado, 26 de maio de 2018

5ª carta para minha filha

5ª CARTA PARA MINHA FILHA 


Oi, meu amor!
Nesta carta quero te falar sobre ser mulher. 
Dizem que em algum momento, nos primórdios da humanidade, a mulher tinha status de deusa nas comunidades e tribos primitivas. O único ser capaz de gerar vida! De seu corpo saíam as crianças para embelezar o mundo e dar continuidade aos tempos. O homem ainda não tinha se dado conta de sua parte no processo. A impressão era de que a vida era gerada sozinha, pela mulher, pois os povos eram nômades, selvagens, e não se considerava a influência de um ato acontecido 9 meses antes ao nascimento do bebê. É por isso que dizem também que a mulher é mãe milhares de anos antes do homem se perceber pai. (Ao que me parece um caminho cujo os homens, em geral, ainda estão trilhando e evoluindo a cada geração, assim como nós mulheres também o retomando com consciência). Até que surgiu a agricultura, os povos passaram a não se deslocar e o homem viu a concepção gerar uma barriga e depois uma criança, até de alguma forma concluir, “esta criança quem gerou fui eu”, ou “eu sou o poderoso gerador da vida”. Acredita-se que a partir disso uma história de desrespeito com o feminino pode ter se iniciado. O masculino tomou o poder. Historicamente conhecemos poucas mulheres, a história da humanidade, a ciência, é contada, em grande parte, pelos homens... Em passos muito pequenos nós mulheres vamos conquistando o nosso espaço na sociedade.  
Você, minha querida, vai nascer em ano de eleição, quando as pessoas têm o direito de escolher seus governantes, os líderes que irão nos representar por alguns anos no comando do país e dos estados. Mas veja só, não faz nem um século que as mulheres conquistaram o direito de igualdade de voto no Brasil. Foi em 1932. Talvez pareça bastante tempo para você, mas a avó do meu pai, que eu conheci, foi uma mulher que viveu nesse Brasil em que somente os homens tinham o poder sobre as decisões públicas. Esta conquista aconteceu um pouco antes para as finlandesas, em 1906. Já para as sul-africanas somente em 1993, quando a mamãe já era uma adolescente de 14 anos. Ao passo que para as árabes (da Arábia Saudita) somente em 2011. Com essa comparação parece que este país é um pouco menos hostil com as mulheres, porém tudo que se passa no planeta é sentido por nós de alguma forma. Estamos ligadas a todas as mulheres do mundo, ao feminino invisível, e também aos homens, que são gestados por mulheres e que, de alguma forma, não conseguem quebrar o poder da cultura, dos costumes, que ainda depreciam o valor do feminino. Estes e outros acontecimentos, filha, estão cravados na carne, no sangue, no DNA humano. Somos descendentes de barbáries e temos na alma o sentimento do que mulheres e homens viveram em todas as eras planetárias. Estamos conectadas a esses sofrimentos mas também à violência que foi (e é) praticada por humanos como nós. Em qualquer lado é sempre alguém como nós. Não podemos esquecer disso. Mas eu quis te contar sobre as mulheres, a condição em que nascemos, para te falar de um homem que eu tenho admirado e que tem me lembrado muitas vezes sobre o meu próprio poder (eu me esqueço, filha, eu e tanta gente em volta!). É o médico que escolhi para “assistir” o seu (nosso!) parto. A cada consulta pequenas coisas que ele diz me tocam profundamente. Há uma beleza em estar diante de um homem que realmente compreende e sente tudo que estou tentando te explicar sobre a condição feminina. Confesso que sou filha de uma cultura muito machista. A linhagem de mulheres da nossa família (pelo menos as que conheci, sua bisavó, sua avó, e eu, sua mãe), crescemos e fomos educadas em uma cultura de valorização do masculino, como se fôssemos um pouco menos capazes que os homens. É uma história que se repetiu por muitas gerações em nossa família, então eu diria que está impregnada. Impregnar vem do latim “impregno”, que significa um corpo penetrar em outro. Veja só a nossa linguagem, meu amor, “grávida” em inglês é “pregnant”. Eu estou impregnada de você. E você já nascerá grávida, impregnada, de muito do que estou te contando. 
O seu pai também nasceu nesta cultura, influenciado por um inconsciente coletivo que valoriza mais o masculino. O lado bom disso foi que nos encontramos e nos apaixonamos envoltos por algumas dessas distorções sobre o masculino e feminino mas ficamos anos nos relacionando e procurando nos “limpar” de tudo para ficarmos mais puros para você. Totalmente isso não é possível, pelo menos não foi ainda, no nosso caso. Mas eu observo que caminhamos e que a sua chegada e o fato de você trazer esse DNA feminino irá contribuir no nosso aprendizado a respeito do que é ser mulher e de como uma mulher merece ser tratada, respeitada e amada como um ser divino (não que os homens também não sejam, este é um merecimento humano, que se estende aos outros seres vivos que partilham o mundo conosco). 
Mas voltando a falar do nosso médico, o Bráulio. Ele trabalha com uma equipe de pessoas comprometidas em oferecer segurança, bem-estar, conforto, para a mãe e para o bebê que vai nascer. Nos partos naturais é a criança que escolhe a hora, então todos precisam estar disponíveis 24 horas para atender essa demanda. Por isso é importante que seja uma equipe, uma rede de apoio. Durante a gestação o Bráulio terá um período de férias e nós gostamos tanto dele que papai quis perguntar “mas você que vai fazer o nosso parto, né?” Para se certificar de que ele teria voltado e não delegaria isso a outra pessoa. Então ele respondeu: “Eu não, quem vai fazer é ela” e apontou para mim, filha, e depois confirmou “mas eu estarei com vocês para acompanhar”. Foi a primeira vez que eu estive diante de um homem, médico, consciente do poder da mulher ao parir um bebê. Deveria ser óbvio, mas nossa cultura é tão distorcida que parece que quem dá à luz a criança é o médico. Acredito que o Bráulio amadureceu como homem (e pôde ficar mais consciente) pela experiência nos mais de 100 partos naturais que ele assiste por ano... Ele viu muitos bebês, mães e pais nascerem da forma mais natural que existe: sem intervenção. Isso deve gerar uma baita fé na natureza, na vida. Medicina e técnica vem depois, para complementar o que a natureza deixou belo e pronto. 
Na consulta desta semana eu saí para ir ao banheiro e quando voltei seu papai estava comentando que ouve dos amigos médicos (educados dentro da cultura da cesárea, que é uma dádiva necessária para a segurança de uma minoria de mães e bebês, muito importante e que eu celebro que exista, pois salva muita gente), ao saberem que escolhemos tentar o parto natural, que a cesárea é o parto mais seguro para o bebê. E o Bráulio comentou: “Então quer dizer que seus amigos médicos querem dar palpite nos procedimentos que serão usados no corpo da sua mulher, na escolha dela para o nascimento da sua filha, é isso?”
Obviamente eles não fazem isso por mal. Eles apenas seguem a cultura de desrespeito ao feminino. O poder está na mão da medicina, da técnica (às vezes médicos, às vezes médicas, hospitais) e acredita-se que a própria mãe, grávida da vida, não sabe o que é melhor para si e para o bebê. Velada está uma violência que atinge o corpo da mulher, sua natureza parideira e suas escolhas. Eu mesma já fiz parecido em outras situações. Porque trabalho com educação muitas vezes me intrometi dando conselhos sobre como criar uma criança. Então para mim a fala do Bráulio foi uma lição de consciência, de alguém que está consciente de alguns absurdos que cometemos sem perceber, do quanto somos violentos e invasivos disfarçados de amorosos. 
Celebro, minha filha, que além do papai, ele será um dos primeiros homens que você irá conhecer quando estiver fora do meu corpo. Que você possa ter gravado em sua memória essa integridade com nós mulheres. Confio muito nele, mas torço para que possamos ser nós duas (e papai como coadjuvante) as protagonistas do seu nascimento. Vai ser a nossa dança de amor, a coreografia mais mágica e única de dois corpos entrelaçados, que marcará o seu momento de nascer mulher e o meu momento de nascer mãe, sua mãe!
Aline Ahmad
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*quero deixar claro que não estou dizendo o que é melhor para o corpo de nenhuma mãe ou mulher. Sonho com a liberdade de cada uma poder se informar e escolher. O parto natural é a minha escolha por enquanto e é possível para 80% das mulheres com segurança. A medicina consegue identificar quem são os 20% (ou 15%), que bom! Se eu não fizer parte dos 80% aceitarei com amor a oportunidade de dar à luz com a cesárea. Mesmo assim quero muito viver a experiência do trabalho de parto. Esta é a minha vontade. Infelizmente minha filha ainda não pode responder a vontade dela. Vai ser o conjunto das nossas vontades que vai possibilitar o que irá acontecer. E a equipe estará a postos para garantir a segurança das nossas escolhas ou para reconhecer a escolha da minha filha com os aparatos disponíveis que a medicina dispõe, caso a minha intuição erre, por exemplo. Há aparelhos para medir a frequência cardíaca do bebê o tempo todo, se for necessário, e detectar qualquer risco. Deixando claro que as dificuldade acontecem no máximo para 20% das mães e dos bebês. Todos os outros casos não necessitam de nenhuma intervenção. Isso é um  dado científico que arredondei para mais, importante ser levado em conta. 

*esta carta foi escrita há algumas semanas mas a foto tem apenas uma semana e minha barriga já cresceu de lá para cá. Tirei a foto no domingo 13/5/2018, entrando nas 28 semanas

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