sábado, 28 de abril de 2018

1ª Carta para minha filha

Filha, estou adiando escrever para você. Talvez porque agora você não vá ler, mas poderá sentir dentro de mim o que está acontecendo e o que temos vivido juntas. A sua mãe desde muito pequena sonhou em ser escritora. Ela até já publicou um livro inspirada na história de como conheceu seu pai. (Acabo de perceber que eu disse “a sua mãe”, ao invés de “eu”, talvez ainda esteja me familiarizando com essa nova persona que é sua mãe, no fundo, no fundo, somos almas companheiras vivendo esses papéis nesta vida. Eu sinto profundamente que você é uma alma que me acompanha. Nós nos escolhemos em algum tempo e espaço em que tempo e espaço não existiam. E já é uma honra para mim ser sua mãe!)

Como estava dizendo, sobre minha vontade de ser escritora, de não apenas escrever, mas de ser lida, isso faz com que eu queria compartilhar com as pessoas o que eu vivo e o que eu sinto. Hoje temos a oportunidade de fazer isso através das redes sociais. Toda vez que escrevo sobre mim e você muitas pessoas lêem e se emocionam, acredito que consigo conectar nelas não o meu amor por você, mas algum amor que exista nelas. Na verdade o amor deve ser um só. Então são palavras de amor que despertam o amor, filha. Você já deve sentir. 


Esta semana, na noite de 23/4, seu pai e eu nos deitamos para dormir mas antes de fechar os olhos ou de ler um pouquinho (como costumamos fazer) o papai veio conversar com você colocando o rosto bem pertinho da minha barriga. Ele também colocou as mãos e eu coloquei as minhas com as dele. Ele já tinha feito isso outras vezes mas nesta noite foi a primeira vez que sentimos você se mexer dentro de mim. Enquanto ouvia a voz dele você se mexeu algumas vezes. E eu me dei conta que para sentir você eu preciso ficar bem quieta e atenta. Seu pai me ensina muitas coisas e neste dia ele me ensinou a te sentir. 




quinta-feira, 5 de abril de 2018

Terceiro ultrassom

Terceiro ultrassom - 3/04/2018

21 semanas. Bastante esperança de que confirmaríamos o sexo do bebê. 
Sempre tivemos expectativas de ter uma menina. Vivi neste universo desde a infância. Acompanhei a chegada de duas irmãs e 3 sobrinhas. Não tinha a mínima ideia de como seria criar um menino. Não dava pra sonhar com algo tão desconhecido. Sou rodeada de mulheres. Sempre foi assim. Além disso as menininhas da família sempre deixaram no Paulo um apaixonamento e um brilho nos olhos tão encantado que eu sempre tinha vontade de termos a nossa e de poder vê-lo também assim deslumbrado com uma que tivesse saído do meu ventre e tomado do meu leite, sendo um pedaço meu inteiro e autônomo recebendo dele atenção e devolvendo a ele a suprema alegria que mora em seu rosto nos contatos que faz com as crianças. 
Eu entendo bem uma menina, sendo uma até hoje, naquilo que me liga a todas as mulheres do planeta, nos desafios que a vida apresenta, nas doçuras possíveis. Eu não sabia nada sobre um menino. Estava disposta a seguir meu instinto mas sentia um lampejo de medo. Meu menino seria frágil demais com o amor que quero dar. E minha vontade de vestí-lo, quase fantasiá-lo, das tantas expectativas que tento me desvencilhar, mas que crio, assim mesmo. Umas são objetivas como roupas coloridas, flores, delicadezas... Como me livrar dos tantos conceitos que estão comigo a respeito do que é um homem e uma mulher?

Sim, aspiro a igualdade, como uma feminista. Como mulher reconheço uma sociedade que ainda limita os alcances do feminino. Observo com admiração as expoentes que atravessam barreiras e brilham. Talvez nunca as disseram: homens e mulheres são diferentes!

Pensei em não saber o sexo, deixar a surpresa para o momento do parto, para tentar me livrar das expectativas. Mas percebi que não conseguia. Estava acima do meu controle. A minha vontade de viver esse caminho um pouco mais conhecido — de criar uma menina — era tanta que eu temia machucar ou interromper a masculinidade de um menino sendo gerado no meu corpo. Muito neurótica? Talvez...rs

O Paulo, por sua vez, também tinha suas certezas. Abdicou do sonho de conviver com uma menininha e se preparou para receber um menino, começou a aceitar essa verdade que acreditava ser a mais provável. Ele dizia que no ato da concepção sentiu a alma de um menino passar por nós. Acreditou nisso o tempo todo, com tanta convicção, que eu também passei a compartilhar a sensação de que um menino estava nos preparando para chegar. 

Marcamos o ultrassom com o mesmo médico do exame anterior. Nosso segundo morfológico (um ultrassom bem detalhado). Vimos em 3D um lindo rostinho na tela. Narizinho arrebitado, boquinha. De repente o médico mostrou corriqueiramente os órgãos genitais. E já foi se referindo a ela. Foi um susto e não uma notícia. “Vocês não sabiam? Achei que já tivesse falado no ultrassom anterior. Como conseguiram esperar até agora?”

Fizemos aquela pergunta que só denuncia o espanto: Certeza?

Sim, certeza, ele respondeu e acrescentou: “Olha aqui como já está tudo bem formado” e com a seta ele apontava na tela alguns pontos e descrevia. 

Uma alegria me invadiu. Meu amor pela criança cresceu 10 vezes. Me arrependi de não saber antes. Incrível como esta única informação me aproximou deste Ser, como se agora eu a pudesse compreender mais. Como se eu, agora, soubesse mais quem ela é. Uma mulher! Uma fêmea! Uma espécie como a minha. Sei quem ela é. Alias, sei quem você é, mas terei que a descobrir por toda minha vida, filha. 

Finalmente posso chamá-la de filha. Filha. Filha! Filha...

Você ainda não tem nome, mas já tem todo o meu coração. 

(Foto ilustrativa deste momento de surpresa. Tirei da minha sobrinha Rubi)




terça-feira, 3 de abril de 2018

De repente um espinho

De repente um espinho atravessa camadas de pele e fica ali cravado, sangrando horas, dias, anos. Até nos acostumarmos com aquela dor como um acontecimento perdido no passado, mas continua ali, e a qualquer momento pode ser ativado novamente como se alguém fincasse o espinho um centímetro a mais, para nos lembrar que jamais parou de doer ou sangrar e que continua manchando de vermelho a nossa vida como se fosse novo, mesmo sendo só um reflexo, uma repetição daquela dor original. O espinho é cravado na nossa distração com a pétala e com o perfume, quando inocentemente estávamos entregues, com os poros bem abertos e a pele receptiva. 
Nossas dores são originárias de choques de humilhação, rejeição, exclusão ou abandono. Às vezes estes 4 aspectos de dor e tristeza estão presentes na mesma situação em que o espinho foi fincado. Fomos humilhados, rejeitados, excluídos, abandonados... Os sentimentos estão vivos, mesmo que as lembranças estejam mortas. Com sorte lembramos da cena, uma imagem de muita dor. Somos capazes de recordar quem nos humilhou, o que disse, ou onde nos abandonaram, ou porque até hoje nos sentimos excluídos ou novamente rejeitados. Às vezes o choro da criança está claro, às vezes perdido na memória. Pode ser que sobre uma cena da adolescência, ou então apenas essa sensação repetitiva em nossa vida adulta. Quando esta dor é tocada, por algum motivo qualquer, somos tomados profundamente por uma tristeza incompreensível aos outros e inexplicável com a razão. Nem sempre condiz com o que está acontecendo, mas é algo que fez o espinho ser espremido um pouco mais e aflora toda a dor guardada e reprimida, volta com força o sentimento de exclusão, rejeição, humilhação, abandono, volta atualizado e reeditado no presente. 
Dizem que a gravidez é uma travessia por todos os fatos importantes, bons ou ruins, que vivemos. De certa forma eles podem estar sendo reeditados no feto, não está sob nosso controle evitar isso. 
Tenho tido uma gravidez muito doce e alegre mas também tenho visitado (em alguns momentos com suavidade em outros com intensidade) os meus espinhos. Acho que aconteceu duas vezes nesta gravidez, por enquanto, mas na segunda vez parece que foi mais doloroso que na primeira. Há poucos dias estava bem no ponto em que o espinho foi fincado, revivendo a dor de uma cena que no passado não é muito clara e com um gatilho que sinto vergonha de contar. Mas é o momento chave em que sentimos tristeza. Da tristeza profunda nasce muita raiva e da raiva criamos nossos pactos de vingança  “eu vou me vingar de quem fez isso comigo”, e criamos também a mentira “ninguém vai saber, pois corro o risco de viver isso de novo, se souberem. Não posso deixar que ninguém perceba minha raiva e meu plano de vingança”. Pronto então nos mascaramos daquilo que consideramos que não será mais excluído, rejeitado, humilhado, ou abandonado. Mas o espinho nos acompanha como que denunciando que enquanto estivermos com ele fincado na pele será mais simples e fácil sentirmos a dor novamente. 

Fatos muito corriqueiros, uma frase que alguém nos disse, uma atitude de uma pessoa próxima ou desconhecida, qualquer coisa pode desencadear um processo doloroso conectado ao espinho da nossa dor original. Mas, sem dúvida, a esfera em que estaremos mais suscetíveis a sentir a dor novamente é na esfera dos relacionamentos, com ênfase para os relacionamentos mais íntimos. Assim como a criança faz com os pais e/ou familiares mais próximos, depositamos, na pessoa com quem nos relacionamos, muitas das nossas expectativas de felicidade. Esperamos sempre algo em troca ao que damos. Nada é de graça. Nosso coração ainda não é puro. É um coração ferido que teima em se ferir novamente. Esse é o caminho da liberdade e da autonomia, quando vemos em nós o movimento na direção de uma compreensão mais ampla, mesmo que o caminho inclua atravessar as dores, oferecendo-nos a única forma de curá-las: bem de perto!