quinta-feira, 23 de julho de 2015

Uma pérola de Dominic Barter

Um texto chocante que revê todos os padrões instituídos sobre o que somos, quem somos, o que não somos, quem não somos, o meu, o seu, o nosso. Algo profundo sobre ter e ser. Sobre reconhecer-se, observar-se, não perder a si mesmo, ter apenas si mesmo. E com isso tudo e todos. E ser também de tudo e de todos, além de si mesmo.


"Fui assaltado agora pouco, por três pivetes, que levaram minha bicicleta.

Zera. Começo de novo.
Alguns minutos atras parei a bicicleta e logo três pessoas, de uns 13 a 16 anos, estiveram tão perto de estar me apertando, mãos na bicicleta e todos falando juntos, ‘me dá, me dá, deixa eu, vou pegar tio….’
Noto como, de surpresa, a longa viagem de volta para a tranquilidade com o mundo chegou num ponto em que continuo segurando o que chamo ‘minha’ - ou seja, resisto - mas sem o estresse da ideia de posse. É como se meus músculos seguissem uma lógica bem enraizada, enquanto meu olhar já procura outra.
Esse estado criou um impasse, que nos providenciou uma pausa. E na pausa, podíamos conversar. Quatro cadeias musculares puxando em direções diferentes, formando um equilíbrio tenso mas estranhamente estável. Dentro do qual as palavras fariam a diferença.
Vi que ninguém procurou meu olhar direto. Levou um tempo e uma mudança de tom de voz minha, e uma leve desaceleração no ritmo das palavras, para gerar a curiosidade, e talvez a segurança, para a mais nova levantar sua cabeça para me encontrar. Todo o clima mudou naquele instante - todos nós perdemos 10% da tensão.
Nesta pausa dentro da pausa eu achei a primeira pergunta: “Mas não é que queriam passear um pouco com a bicicleta?” Tempo para considerar. Ocorreu-me que talvez o que queriam mesmo - neste caso, naquela hora - não teve antes tempo para ser visto, como não teve para mim. Estávamos para descobrir. Agora estávamos de 8 mãos na bicicleta, mãos firmes mas nenhuma puxando.
Outra pergunta, seguindo o silencio depois da primeira, que ouvi como uma disposição de considerar que talvez sim, passear seria legal, “Vocês podiam fazer uma volta aqui, cada um, e depois eu continuo.” Meu tom pretende um silencio “Que tal?” no final da frase. “Fazer uma volta e devolver nas minhas mãos”. Outro “que tal?” embutido na inflexão da voz.
Mais contato de olho. “Tio, tem água?”. Eu solto a bicicleta e sento para abrir meu bolso e dividimos os quatro a água. Noto as limões nas mãos, para fazer malabarismo no sinal/semáforo perto. Noto três colegas ou irmãos, trabalhando entre os carros. Noto o cuidado com que limpam o bico da garrafa, um cobrindo com a camisa e assim filtrando o que bebe. Algo nisso me toca. Gosto do que consigo ver como semelhante. Gosto ainda mais do que admiro.
Saem para dar uma volta, sem mais falas além do silencioso reconhecimento mútuo no passar da água e a volta da garrafa para mim. A ‘volta’ é bem maior do que imaginei. Logo nem vejo o ciclista, e quem corre junto. Leva vários minutos até a primeira troca, que acontece quase no limite do meu olhar. E ai, enquanto assisto, noto que continuo assistindo o que é 'minha', e que isso é tangível pela tensão no meu corpo. Desisto disso.
Agora assisto ainda, agora para aquilo para o qual sou responsável. Ideia com que compactuo, pois a bicicleta em questão não é só ‘minha’, mas também é. Porém ideia que - como esse texto em vários momentos - não sabe largar a divisão ‘eu’ e ‘eles’. E assisto igualmente o perigo, de vidas jovens tão perto de carros em velocidade, numa bicicleta desproporcionalmente grande e pesada.
Converso com quem estava antes entre os carros enquanto assistimos o malabarismo. Ele quer saber da bicicleta. Falo como não tenho pressa e, enquanto falo, noto que não tenho mesmo. Só não quero que travem a bicicleta, pois não terei como destravar depois e continuar.
E, lá atrás, cresce os pensamentos que não são minhas - nem o som da voz deles é minha - e que me falam que aqui tem perigo. Que é assim - com esse engano de que você está se relacionando - que as pessoas se encrencam. Anos de desconsiderar estes discursos, e da vantagem de ser ‘outro’, e agora não sou mais tão outro, e assim as vozes entram pela porta dessa identificação, e perturbam. E eu sinto o desapontamento sem fundo, uma caída sem fim, de ser sujeito a qualquer lógica que me separa do humano, do outro, do encontro, de mim, enfim do nós, querendo tao intensamente de acontecer a cada instante e sendo tão esmagadoramente rejeitado. E carrego esse desapontamento, viro e vou embora, sem mais falar.
Caminho para caminhar. Não estou tenso. Só sério. Tomo café ali perto. E noto que estou olhando com uma mansa curiosidade para este medo - que 'minha' é e não é - e que isso, esse aconchego íntimo, com as ideias que mais nos viciam, é o retorno ao contato. Então volto a eles, tendo voltado a mim, e - agora escuro - a pracinha do sinal está vazia de gente.
E lá no meio, está a bicicleta. Com aquilo que trava ela colocado espertamente para fingir que está segurado, mas solto.
Fui encontrar, agora pouco, com três pessoas, e dividimos uma bicicleta." (Dominic Barter)

3 comentários:

Helta Yedda disse...

Texto muito bom. Uma reflexão e tanto e muito caminho para percorrer até chegar a este ponto.

Jésu Antomar disse...

É complicado senhores.
Aqui deu certo!!
Pensemos na equação: prevenção, tratamento, re-habilitação e redução do dano.
Na Maré, vai funcionar, a história da bicicleta??
Como tese extremamento válida, mas os termos da equação acima precisam ser considerados.
Grato
Jésu

Estevão Machado disse...
Este comentário foi removido pelo autor.