segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Biscoito Fino

Meus escritos são biscoitos finos,
Mas não mastigue, quebram.

Não são doces, nem ásperos,
Se os quiser:
Prove!

Constatação.

Dançam em mim tantas aventuras.
Eu digo "dancem!"
Elas pulam, se sacodem, remexem lembranças...

Parada penso:
"Eu quase não vivi..."

Deram um salto sobre mim as incertezas.
Para estar certa estive muda, intacta, estática.
De tanto ficar quieta aprendi a gritar,
Em silêncio.

Ninguém ouve...

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Dicionário

Quero comer as palavras, sentir o gosto cálido das letras, beber os sons, significados.
Quero comer os livros, mastigar as páginas, os conhecimentos, as conclusões...
Quero comer as informações, as histórias, os dizeres, os poemas.
Há tanta fome.

Quero engolir os capítulos, fazer com que desçam goela abaixo,
Quero engolir as frases, as crases, os acentos, as pontuações,
Quero engolir até que constituam meu sangue, minha alma...

Quero comer os textos, os pretextos, os parágrafos, os verbos,
Até que os nomes das coisas se tornem meu próprio nome,
Depois deste banquete, palavrete, verbete, o cacete(!)
Ainda tenho fome.


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Palavra

Acredito em um tipo de despertar pela palavra.
Acredito na palavra justa, certa, exata, que acorda a alma e encerra silêncios.
Acredito que cada um tem a sua e que ela fica escondida inaudível como se o ouvido, para esse som, precisasse de apuro e preparo.
Mas também precisam estar afinados os dedos que escrevem e a voz que canta a palavra.
O mestre é sempre o tempo, afinador dos aprendizes, encantador dos instantes.
A palavra serpenteia as horas e espreita o tempo, esta sempre na iminência de ser dita, mas ninguém a conhece.
O seu rosto é uma sombra que ninguém vê, e seu nome é uma senha que ninguém diz.
Ainda assim acredito no despertar pela palavra, nas raras vezes em que pode ser pensada, escrita e dita. Ela é o único antídoto para a alma que dorme.
E dormem todas as almas vivas, enquanto o despertar da palavra "morte" não chega.

Morto é aquele que não sabe que está vivo, ou que, se vivo, não sabe que vai morrer.

A voz (e a escrita) são os instrumentos da palavra, pelos quais ela se concebe bela e única.
A poesia é a música da linguagem e a palavra é a sua melodia.

(21/04/2012)

sábado, 14 de janeiro de 2012

Para morrer onde se nasce

"Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado". (Fernando Pessoa)

Ali depois do imenso portão um novo mundo se abria, em que duas rodas giravam embaixo de si e uma enorme, de fogo e de luz, o aquecia muito mais alto que sua cabeça. As de baixo o faziam desbravar caminhos, a de cima bronzeava sua pele. Levava apenas o vento na garupa. Algo assim como liberdade. Livre do mundo e para o mundo. "Adiante! Avante!" Gritava o menino. Pelas duas margens da estrada as copas das árvores se debruçavam para dentro como se tentassem abraçar-se, eram fugazes desenhos de sombra no chão que a mobilete atravessava em velocidade. Para onde ia? Lugar nenhum. E lugar nenhum era o mundo todo, a terra toda, a natureza completa, com feitiços e matizes, com silêncios e mistérios que habitavam seus sonhos fugidios e presentes desejos de esconder-se de si, para somente assim ser si mesmo.

Acelerava na descida e a pequena moto ameaçava voar. Voava a dor, voava a solidão, voava a angústia... Subia a estrada íngreme de onde podia apreciar a paisagem verde e árida. Parecia estar tão perto, chegando em algum espaço de chegada, mas nunca chegava. Porque não havia chegada, só uma partida constante. E um deixar-se. Para ser-se era preciso deixar-se em cada trecho da estrada. Espalhar-se pela terra como um semeador faz com as sementes.

Aquela terra é testemunha de tanta vida! Uma vida que ele busca respirar de novo.

"Quando eu morrer vou me enterrar aqui. Para que eu possa voltar pro lugar onde nasci". Um homem só nasce no lugar que o amor se fez sentir pela primeira vez, onde a sua existência, de fato e consciência, começou a ser moldada. Por isso era ali que tinha nascido. Antes tinha só existido, ou vivido, mas "nascido", começado-se... Aquele era o lugar. Uma terra de montanhas ao redor de onde podia ser observado o por-do-sol e o raiar das estrelas. De onde era possível sentir o cheiro do mato e da flor, da chuva, do bolo de chuva... O calor da lareira, do sol, do amor...

Ele falou "vou me enterrar aqui", assim dessa forma, como se fosse possível a alguém enterrar a si mesmo. Talvez, caso se percebesse morto ainda vivo... Quanta gente morta não há que vive andando por aí só com o corpo e olhos abertos? Provavelmente se "morresse" mesmo vivo - dizem que se morre quando se abandona os sonhos - gostaria de ordenar seu corpo a deitar-se naquela terra até parar de respirar, para que respirasse pela última vez no lugar onde nasceu. Para que respirasse-se, respirasse a si mesmo, misturado aquele ar. Tanto Paulo há pelos ares de Ibiuna... Paulo misturado ao rio, Paulo misturado às folhagens, às plantas, aos cachorros vira-latas que andam como selvagens pelo condomínio Colinas. Paulo misturado ao céu e às piscinas.

Dizem que naquele tempo de antes piscinas eram invadidas por espíritos da floresta, só os íntimos sabem, porque só a eles contou, mas era o espírito dele e o de outros amigos - que também estavam nascendo ali - que pulavam muros ou criavam passagens secretas por baixo de cercas de arame em busca do proibido. O proibido era mesmo mais gostoso!

Ele abre a janela do carro e respira o ar que sempre esteve misturado a ele. Está de novo chegando em seu recôndito lugarejo. Inspira fundo como quem sente um perfume amado e conhecido, cheiro do passado que fica guardado no vento (o mesmo que andava em sua garupa), e mais uma vez as partículas se misturam ao seu sangue e passam a fazer parte do seu ser.

Então ele me disse: "-Vou te mostrar os 'matos' que comprei!"

Estava, obviamente fazendo alusão a um fato que contei a ele. Esta foi a frase escrita pelo o meu avô em uma carta para minha vó quando eles começaram a namorar. Era um amor platônico, dito em palavras escritas, em um tempo que só se permitia um relacionamento que acontecesse unicamente em mãos dadas, nenhum toque além desse. Minha vó não sabia ler, precisava de ajuda para entender o que as cartas diziam. Depois de lidas, as cartas eram guardadas em um porta-jóia como objetos de muito valor. Foi somente pelo cuidado e afeto com que foram mantidas que, uns 50 anos depois de escritas, eu as encontrei. Esta era a frase que mais tinha me causado estranheza... "Vou te mostrar os matos" resgatava da minha cidade uma lembrança que eu não tinha. Para mim Guarulhos era um lugar urbano, com prédios e avenidas. Imaginar que tudo aquilo tinha sido um aglomerado de matos com estradas de terra ligando uma propriedade a outra me causava espanto. Depois, compreender que a prosperidade de meu avô tinha começado com aquele estreito pedaço de terra, foi como encontrar um sentido. Uma coisa não começa do jeito que é. Pelo menos não em aparência. As coisas nascem e se tornam outras coisas, em geral maiores. A riqueza do meu avô - que em grande parte me sustenta até hoje - tinha começado modestamente do jeito que ele descrevera como "matos".

"Olha é aqui. Meus matos!" Ele apontou um pedaço de terra, o seu primeiro, e pude agradecer por existir ainda começos e nascimentos no mundo, e por ele poder começar da mesma forma que meu avô. Quando li aquela carta tive a sensação de que não existiam mais "matos" como ele descrevera. Ainda há. Não se sabe por quanto tempo...

Pode ser que toda riqueza comece do mato, ou, se não começa mais, um dia começou. Mas além dessa riqueza, constituída de dinheiro, capaz de comprar terrenos e sustentar bocas com comida, havia escondida ali uma outra riqueza. A riqueza dele, feita de sensibilidade e sentimento, feita de canto e doçura, plantada com ferramentas de agricultor e com muitos passeios levando o vento na garupa. Espalhou-se por Ibiuna a riqueza do meu amor, riqueza que não caberia naquele primeiro pedaço de mato comprado com notas verdes. Porque precisa do mundo todo para abrigá-la. Meu amor é rico! E já o era, desde menino. E o será, até o dia de espalhar-se de novo, só que em matéria, enterrado naquele lugar.