terça-feira, 3 de abril de 2018

De repente um espinho

De repente um espinho atravessa camadas de pele e fica ali cravado, sangrando horas, dias, anos. Até nos acostumarmos com aquela dor como um acontecimento perdido no passado, mas continua ali, e a qualquer momento pode ser ativado novamente como se alguém fincasse o espinho um centímetro a mais, para nos lembrar que jamais parou de doer ou sangrar e que continua manchando de vermelho a nossa vida como se fosse novo, mesmo sendo só um reflexo, uma repetição daquela dor original. O espinho é cravado na nossa distração com a pétala e com o perfume, quando inocentemente estávamos entregues, com os poros bem abertos e a pele receptiva. 
Nossas dores são originárias de choques de humilhação, rejeição, exclusão ou abandono. Às vezes estes 4 aspectos de dor e tristeza estão presentes na mesma situação em que o espinho foi fincado. Fomos humilhados, rejeitados, excluídos, abandonados... Os sentimentos estão vivos, mesmo que as lembranças estejam mortas. Com sorte lembramos da cena, uma imagem de muita dor. Somos capazes de recordar quem nos humilhou, o que disse, ou onde nos abandonaram, ou porque até hoje nos sentimos excluídos ou novamente rejeitados. Às vezes o choro da criança está claro, às vezes perdido na memória. Pode ser que sobre uma cena da adolescência, ou então apenas essa sensação repetitiva em nossa vida adulta. Quando esta dor é tocada, por algum motivo qualquer, somos tomados profundamente por uma tristeza incompreensível aos outros e inexplicável com a razão. Nem sempre condiz com o que está acontecendo, mas é algo que fez o espinho ser espremido um pouco mais e aflora toda a dor guardada e reprimida, volta com força o sentimento de exclusão, rejeição, humilhação, abandono, volta atualizado e reeditado no presente. 
Dizem que a gravidez é uma travessia por todos os fatos importantes, bons ou ruins, que vivemos. De certa forma eles podem estar sendo reeditados no feto, não está sob nosso controle evitar isso. 
Tenho tido uma gravidez muito doce e alegre mas também tenho visitado (em alguns momentos com suavidade em outros com intensidade) os meus espinhos. Acho que aconteceu duas vezes nesta gravidez, por enquanto, mas na segunda vez parece que foi mais doloroso que na primeira. Há poucos dias estava bem no ponto em que o espinho foi fincado, revivendo a dor de uma cena que no passado não é muito clara e com um gatilho que sinto vergonha de contar. Mas é o momento chave em que sentimos tristeza. Da tristeza profunda nasce muita raiva e da raiva criamos nossos pactos de vingança  “eu vou me vingar de quem fez isso comigo”, e criamos também a mentira “ninguém vai saber, pois corro o risco de viver isso de novo, se souberem. Não posso deixar que ninguém perceba minha raiva e meu plano de vingança”. Pronto então nos mascaramos daquilo que consideramos que não será mais excluído, rejeitado, humilhado, ou abandonado. Mas o espinho nos acompanha como que denunciando que enquanto estivermos com ele fincado na pele será mais simples e fácil sentirmos a dor novamente. 

Fatos muito corriqueiros, uma frase que alguém nos disse, uma atitude de uma pessoa próxima ou desconhecida, qualquer coisa pode desencadear um processo doloroso conectado ao espinho da nossa dor original. Mas, sem dúvida, a esfera em que estaremos mais suscetíveis a sentir a dor novamente é na esfera dos relacionamentos, com ênfase para os relacionamentos mais íntimos. Assim como a criança faz com os pais e/ou familiares mais próximos, depositamos, na pessoa com quem nos relacionamos, muitas das nossas expectativas de felicidade. Esperamos sempre algo em troca ao que damos. Nada é de graça. Nosso coração ainda não é puro. É um coração ferido que teima em se ferir novamente. Esse é o caminho da liberdade e da autonomia, quando vemos em nós o movimento na direção de uma compreensão mais ampla, mesmo que o caminho inclua atravessar as dores, oferecendo-nos a única forma de curá-las: bem de perto!


Nenhum comentário: