domingo, 12 de abril de 2015

A metáfora do "Cinquenta Tons de Cinza"

Tenho ainda muito a contar sobre a Índia, um país de assuntos inesgotáveis para mim, até porque se confunde com o país que eu mesma sou, sob a superfície de pele do meu corpo, com tudo que há por dentro dele, não fisicamente, mas os tecidos psíquicos, emocionais e espirituais que me preenchem. Talvez eu não os tenham escrito `a toa assim no plural, somente uma alusão aos inúmeros habitantes deste país chamado "eu".

Esse preâmbulo é só para justificar que vou mudar levemente de assunto para escrever sobre algo que ficou comigo. Antes da viagem fui assistir ao filme "Cinquenta tons de cinza". Eu viajei pensando que precisava escrever sobre ele e sabia que só teria tempo na minha volta. Não li o livro, falo apenas do filme, mas sobretudo da história, que me parece ser a mesma, até porque cinematograficamente pode não ser um filme com a sensibilidade da arte em sua expressão e linguagem. Este seria um assunto para outro texto, porque embora eu não seja uma especialista, eu admiro o cinema como arte e linguagem, meus olhos ficam preenchidos e encantados quando o diretor escolhe contar uma história por um viés novo, quando ele mistura a história a ser contada com o tipo de enquadramento, com as cores da direção de fotografia, com a música ou ausência dela… Enfim, não foi um filme que fez com que eu me apegasse a esses detalhes, mas a história me toca porque é uma história de amor, embora tenha toda essa embalagem "sexual". Sinto vontade de escrever sobre ele pelas críticas de que foi um filme fútil e bobo, ou de que valoriza a violência contra a mulher, ou de que é vulgar. O problema é que a maioria de nós leva uma vida bastante fútil, convive com pessoas (ou é a própria) que maltratam a mulher, seja com preconceito (no trânsito, no trabalho, na vida doméstica), seja com violência verbal ou física. Essa "guerra" de desrespeito com o "feminino" é muito mais vigente no "mundo real" do que no filme e isso se exprime muito nos relacionamentos afetivos. Então achei pertinente aproveitar o ensejo do filme para olharmos a nós mesmos, deixarmos o julgamento do filme um pouco de lado para esvaziados disso podermos ser mais transparentes com nossas próprias mazelas e violências reprimidas no nosso sentimento ou memória. Eu e diversas amigas fomos muito mais maltratadas em diversos relacionamentos "amorosos" que tivemos do que a personagem "Anastassia". Porque o "sadomasoquismo" não é só um modelo de relação sexual. O "sadomasoquismo" é o principal modelo de relação afetiva que permeia a maioria dos relacionamentos. Há sempre um "agressor", no casal, a figura que domina, que manda. E há um "dominado", uma vítima que cede, que atende e aguenta tudo, para que ela possa se queixar e lamentar eternamente. Pode ser que esses papéis até se invertam eventualmente, mas se formos detalhistas e sensíveis poderemos encontrar esses perfis em nossos próprios relacionamentos e em todos os relacionamentos a nossa volta. Veremos também o prazer que um sente em humilhar, mas também o prazer que o outro sente em ser humilhado, por mais que seja difícil reconhecer. Esse jogo de violência velada é tão comum que a sociedade se acostumou a chamar isso de "amor", de "relacionamento amoroso", de namoro, de casamento. Esta não é uma teoria minha, a psicologia está cansada de saber disso. Sempre comento que tenho aprendido demais com meu mestre Sri Prem Baba, ele tem inúmeros satsangs (uma espécie de palestra em que os textos são redigidos e ficam disponíveis em seu site) que falam sobre isso. Como este a seguir que comenta sobre onde podemos perceber o sadomasoquismo nos relacionamentos:

"Na necessidade de controlar o outro; na dependência ou na codependência que você tem do outro. Na necessidade de que o outro sofra para que você se sinta seguro; necessidade do outro estar por baixo, para você se sentir por cima; de ver defeitos no outro, para você sentir que tem alguma virtude. Essas são formas de exercer poder sobre o outro. São formas de eternizar o jogo do sadomasoquismo. (…) Ora você é o sádico, ora você é o masoquista. Esses papéis se alternam na relação - às vezes, dentro de um minuto, dentro de uma hora, semanas, meses ou mais.
Se você está no papel do masoquista, você se sente uma vítima indefesa da maldade do outro. Se você está identificado com o sádico, você vai agredir ao outro com o seu falso poder. Existe um abuso de poder. O sádico humilha o outro para exercer poder; e o masoquista se sente humilhado para obter poder. Você tenta mostrar para o outro, o quanto ele está sendo cruel com você; o quanto ele é responsável pela sua infelicidade. É sempre um jogo de acusações, e nesse jogo a energia é consumida. Nesse jogo, você vai se esquecendo cada vez mais da sua identidade, e vai fortalecendo cada vez mais a identificação com a criança que precisa ser amada, reconhecida e considerada."
Esses mecanismos podem ser observados, porém para explicá-los preciso me apegar ao que acredito e tenho aplicado `a minha própria experiência de autoconhecimento. Portanto é uma veracidade que tenho vivenciado em mim. A raiz está na infância, em nossos relacionamentos com as pessoas que participaram da nossa criação e que contribuíram para a nossa conclusão de mundo. Ali se instalaram "crenças" e as crenças foram tomadas como verdade. Ali estabelecemos o que é um relacionamento; as maneiras de manipular o poder; como se comporta uma mulher; como se comporta um homem em uma relação; ou na forma invertida; como nunca devemos nos comportar. 

Voltando um pouco ao ponto do filme, o que também me interessa é o sucesso que ele fez. Eu sou uma escritora, isto está gravado na minha vocação, mesmo que nenhum livro meu tenha (ainda, por enquanto) sido publicado. Eu me comunico na forma escrita com o coração nos dedos. Mesmo que o livro não seja sucesso de crítica – eu sei bem o que é beleza literária e reconheço que provavelmente eu não a encontre no livro – admiro quando alguém escreve e faz uma multidão se identificar. Foi, evidentemente, um fenômeno! O que o fez ter este sucesso todo? Na minha opinião foi a riqueza dos personagens principais, ela uma mulher comum, que poderia ser qualquer leitora ou espectadora, sem nenhuma qualidade de beleza, riqueza, ou inteligência muito além da média (por favor não analise a ordem das qualidades que descrevi pois pode acabar descobrindo demais sobre as crenças desta que escreve),  enquanto que ele é um príncipe moderno: lindo, rico e inteligente. Ao personagem "Grey"  podemos acrescentar a característica tão perseguida nos dias de hoje: "bem-sucedido". Mas com tanta perfeição ele poderia se tornar "chato", "tedioso", "boring", como se diria em inglês (um termo que uso por expressar melhor, ao meu ver, sonoricamente, o que procuro dizer). Os príncipes dos contos de fada só duram até a infância, cada vez menor, aliás, as crianças são precoces. Logo as mulheres se interessam pelos "cafas", "bad boys", então a autora de "Cinquenta Tons" foi capaz de fazer este príncipe, que é um "gentleman", cavalheiro, carinhoso, educado, ter esta "pimenta" agressiva. Foi a combinação perfeita para satisfazer o desejo feminino pelo masculino. Grey tem uma doçura, mas a sua virilidade fica intacta pelo apelo sexual que se estabelece entre os personagens. Anastassia realiza suas fantasias sexuais, mas ele realiza todos os sonhos de romance encantado da maioria das mulheres. Como chamar este romance de violento se ele a trata como a maioria das mulheres jamais foi tratada? Ou então não se ouviriam suspiros no cinema. O que acontece no quarto reservado (no filme) é combinado por contrato, com antecedência. Não acontece o mesmo quando um homem trai a confiança de uma mulher, quando a rejeita, ou a trata com descaso, na vida cotidiana, no passar dos dias, diante dos amigos ou na presença-ausente de uma companhia que não existe, e isso vale também ao contrário. Há mulheres que fazem o mesmo, porém ouvimos menos estas histórias, pois os homens não estão tão acostumados a contar as decepções que vivem e sentem. 

Enfim, recomendo o filme, que seja visto pelos homens com esta atenção: o que nele encanta tanto as mulheres? Garanto que não é o chicote, mas pode também ser, em alguns casos. Por que não conversar sobre sexo e intimidade com seus pares?

E que seja visto pelas mulheres, para que se alimente o sonho, daquelas que o tiverem, e para que se reconheça a metáfora. Afinal, o sadomasoquismo, entre quatro paredes, é apenas uma metáfora dos relacionamentos que vivemos o tempo todo, porém com muito menos consciência e, muitas vezes, com muito mais violência e desrespeito pelo outro.

Um comentário:

Unknown disse...
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