sábado, 21 de julho de 2018

11a Carta para minha filha

Filha, ontem estava lendo sobre reconciliação com o nosso passado. Você ainda nem nasceu e sinto como se já criássemos juntas registros na sua vida. Meus sentimentos emitindo impressões nos seus. Minha vida tocando a sua. A sua tocando a minha. Estamos tão nuas uma para outra, tão próximas como jamais estaremos novamente, imagino. Sabemos uma da outra como a nós mesmas e desde sua chegada em meu ventre estamos criando um passado único. Há meses partilhamos os mesmos registros, as mesmas emoções, o mesmo alimento, o mesmo corpo. "É preciso se reconciliar com o passado", li ontem. Sim o passado anterior a você recobre meu presente com as marcas que ficaram. Revejo sobretudo minha mãe, o que ela foi para mim, o que ela é para mim, o que eu sou. Quanto dela ficou no que sou, quanto preciso me reconciliar com ela e com o que fomos. Observo que as mães desconhecem o olhar dos filhos para elas. As mães tem sua própria perspectiva amorosa de como criaram os filhos e se dedicaram a eles com o máximo que puderam oferecer. As mães são generosas, o olhar profundo para elas não é generoso, é humano. E é preciso esse olhar humano para alcançar a mãe dentro de nós, a que gerou e soprou a vida em nós. É preciso passar pela ausência da mãe, pelas imperfeições da mãe, por sua humanidade, para chegarmos a sacralidade da grande mãe: a natureza, a terra, o mar, grandiosos símbolos acolhedores da nossa vida, que nos dão o que comer, onde pisar, onde nos levar.. A mãe é a origem, o chão. Sem a mãe simbólica e única que criamos em terrenos supraconscientes do nosso Ser, não temos apoio para os pés, para caminhar no mundo, nem passagem para adentrá-lo, nem vida que nos alimente a alma. Quando falta a mãe precisamos criá-la recolhendo em nossas próprias raízes os restos de nós mesmos.


Vou falhar filha, vou me culpar pelas falhas. Essa tem sido a cruz das mães do meu tempo, as que observam mais e que se cobram mais. Com os olhos mais vivos essas mães, nas quais me incluo, reconhecem imediatamente as marcas que estão deixando, tatuagens na pele sensível dos filhos. Quanto mais aprofundamos o olhar para nossas mães, fica mais claro o olhar para nós mesmos. Também as descobrimos em nós, decodificamos as repetições, boas ou más. Somos aquela mãe também. E a vida competente na capacidade de nos ensinar, nos presenteia com o perdão. Quando erramos ficamos mais doces para perdoar quem julgávamos ter errado com a gente. Quando compreendemos nossas pequenezas, nos abrimos para aceitar que todos podem ser pequenos também, inclusive nossas mães. Quanto de humildade recebo me tornando mãe! Não sou perfeita, nem posso mais sonhar ser. Nem sonhar que poderiam ser melhores comigo. Como me ensinariam tudo que tenho aprendido? A frase mágica que sempre me liberta das lamentações: "Vivemos exatamente o que precisamos viver para aprender exatamente o que viemos aprender". Chega de lamentar como poderia ter sido, como gostaríamos que fosse! Esta vida, tal como é, é a única forma possível de aprendermos exatamente o que viemos aprender. Controlamos nossas escolhas, mas não controlamos o que nos acontece quando escolhemos. E, ao mesmo tempo, podemos controlar o que faremos diante do que acontece…


Outra frase mágica, filha. Mágica porque nos tira da ignorância, da ilusão, com poucas palavras. "Não é o que nos acontece que nos marca, mas o que fazemos com o que nos acontece". Todo abismo pode representar uma queda, mas se formos pássaros podemos voar. Atravessar abismos com as asas dos sonhos que sustentam nossa realidade. Somos esse vôo pela vida. Um dia voamos, livres do passado. Meu sonho é que eu possa viver intensamente tudo com você, para que não me lamente de nada quando você voar de mim, de nós, de todas nossas memórias, para o céu do seu existir sem limites. Sem os meus limites. Sem os nossos limites. Que você seja livre, filha, LIVRE! Que nenhuma corrente possa impedir seu vôo. Nem as suas próprias. Que você aprenda a se soltar.


É preciso se reconciliar com o passado, filha!



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