quinta-feira, 19 de julho de 2018

10ª CARTA PARA MINHA FILHA

10ª CARTA PARA MINHA FILHA

Filha, nossa reta final, últimas semanas.
Um misto de sentimentos me toma. Uma alegria antecipa sua vinda com ainda mais abertura do meu coração. Tenho junto um pouco de cansaço, sono e também alguma tristeza. Talvez eu esteja começando a me despedir de mim. Um eu que nunca é assim tão verdadeiro quanto o que a vida futura é capaz de me oferecer. Despeço-me do que fui. Algumas fraquezas às quais estive apegada, vitimismo… Mas o país dos sentimentos é sempre confuso. Não se pode lê-lo com as ferramentas do mundo. Não há escola que ensine o seu idioma ou tradução. Então me sinto submetida a um mundo que não compreendo completamente e preenchida de um mundo novo que é você!

Ontem fomos na Bárbara para a segunda consulta com ela, a enfermeira obstetra, uma das pessoas da equipe humanizada que nos assistirá no parto. Enquanto escrevo essas palavras você se move no meu útero, como se soubesse sobre o que está por vir. Você sempre se move quando o assunto é parto, seja se sou que quem fala, ou se sou eu quem ouve. Estamos juntas nessa! 

Na primeira consulta a Bárbara me fez uma série de perguntas que eu considero importantes. Pois o que vivemos no passado pode delinear nosso futuro, sabia, filha? No passado eu fui uma criança como você, na barriga da minha mãe e a Bárbara quis saber como eu saí de lá, o que eu ouvi da minha mãe sobre esse parto, o que minha mãe viveu depois com os partos das minhas irmãs, como foi para ela. Olha que forte, filha, as minhas experiências e o meu discurso tem o poder de determinar suas percepções de mundo, assim como fizeram os sentimentos a absorções da minha mãe comigo. Quando falo e relembro isso tudo, tomo consciência, trago para um campo mais claro o que eu sou e o que estamos vivendo. Com mais clareza surgem as escolhas que podemos fazer, pois no planeta há milhares de pessoas vivendo automaticamente, sem fazer uso das escolhas ou sem tomar consciência sobre si mesmas. Eu já fui uma dessas pessoas, e nada me impede de voltar a ser. A verdade é uma prática. A verdade é movimento. É um rio. Não é uma água parada. Só se mantem a existência da verdade quando a deixamos correr para o mar. Somos assim também, feitos de água. É no movimento constante de auto-observação que somos capazes de conhecer quem somos e retomar a consciência que perdemos constantemente neste mundo nebuloso que chamamos: realidade. Nós criamos a realidade. Cada um cria a sua. E, fatalmente, a mais forte e primeira influenciadora da nossa “fantasia” é a mãe. Para mim foi a minha mãe, sua avó. Para você serei eu. Muita responsabilidade. Por isso preciso me despedir de mim. A natureza já faz isso. Nem sempre somos capazes de perceber. Mas para nascer a sua vida uma morte mais profunda que a física está prestes a acontecer. É comum que na última fase do trabalho de parto as mulheres se remetam à morte: “Eu vou morrer!”ou "Estou morrendo” ou ainda “Não quero morrer”, essa morte metafísica antecede o nascimento dos filhos. Nasce também a mãe e o pai. 

Na consulta de ontem minha principal preocupação era se a sua cabeça já estava na posição, passei dias de ansiedade pensando nisso, com algum medo… Conversei com você, pedi, mas somente quando a Bárbara me examinou e confirmou que sim, você já tinha virado a sua cabeça e o seu corpo no sentido correto e que dificilmente isso mudaria daqui pra frente senti vontade de chorar de emoção, segurei as lágrimas por timidez, e só então percebi o quanto de sentimento eu estava acumulando... Eu não queria que a consulta acabasse mas apesar da disponibilidade dela eu não tinha mais muito o que perguntar. Já tinha perguntado de tudo que me veio à mente e ainda me faltava espaço para falar um pouco mais. Fui adentrando um lado meu que oprimo, embora não pareça, eu evito chorar ou expressar minhas verdades. As verdades mesmo eu escondo até de mim mesma, principalmente as dores, mas eu não quero que seja assim pra você. Porém não está sob meu controle. Eu só tenho a mim para transformar… O melhor que posso fazer por você é buscar a cura de mim mesma. Eu busco, filha, busco. 🙏🏻💜🙏🏻

Aline Ahmad🧚‍♀️ (na foto com minha mãe Avanil Ahmad. O vestido foi um presente dela, feito pela mesma estilista que fez um vestido para ela quando estava grávida de mim, a Helenice Barreto. Inspirado no modelo da minha mãe de 1979, ano em que eu nasci)


Nenhum comentário: