quarta-feira, 24 de abril de 2019

36a carta para minha filha

Olhos de poeta são olhos atentos, filha. O tempo todo é preciso ver o que não é visto. A poesia está sempre acontecendo. Mas muitas vezes está vestida com uma roupa invisível. É como o vento que a gente sente arrepiar a pele, mas não enxerga.

Também podemos aguçar os ouvidos. Ouvir os silêncios, captar olhares e expressões que dizem ou que gritam palavras impronunciáveis. Mas podemos também perceber conversas soltas. Como músicas que quase ninguém ouve. Aqui na livraria uma moça falou ao vendedor: “Mas o livro que você está procurando pra mim você vai pegar aí da estante que todo mundo manuseou? Então eu vou pagar caro em um livro usado?”

Filha, você já veio tantas vezes comigo às livrarias… Já compramos livros novinhos, dentro de plastiquinhos transparentes e outros tantos com digitais de leitores que também passam por aqui e deixam suas marquinhas invisíveis nos livros. Nossos próprios olhos vão beijando as páginas que amamos. Beijinhos sem batom. Só o próprio livro sabe que já foi beijado muitas vezes por olhos diferentes. Então levamos pra casa livros que não só foram manuseados com os dedos, mas beijados com os olhos. Esses são os melhores livros! Os que ficaram na livraria por um descuido. São mesmo caros, como a moça disse. Porém são os que pagamos mais barato. Porque caro não é só o contrário de “barato”, não tem só essa conotação financeira, a palavra “caro” também dá nome ao que é querido, àquilo que desejamos que seja nosso e que, só por querê-lo já o é! Veja, são nossos os livros que amamos, mesmo que os tenhamos deixado nas estantes das livrarias e bibliotecas por onde pisamos durante a vida. Então os livros caros, são os queridos também por outros, manuseados por muitos dedos delicados, beijados por inúmeros olhos, e que vieram morar na estante de casa. A moça não sabia nada sobre livros “caros”, filha. Nem sobre alguma doçura que podemos colocar nas palavras ao conversar com desconhecidos. Ela tinha de repente despejado um ar arrogante por sobre o vendedor agachado, procurando para ela o livro na parte mais baixa da estante. Mas cada vez que eu reconheço uma arrogância, ou qualquer outro traço na personalidade de alguém, preciso, e quero te ensinar, voltar esse olhar também sobre mim, sobre a minha arrogância. O mundo é sempre a poesia que revela quem somos. 
~Março de 2019~
(Continua na 37a carta)

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