domingo, 19 de novembro de 2017

A Carta

A carta

Ele tinha acabado de sair, dela e do lugar. Ia para uma viagem longe, naquele agreste distante, e ninguém sabia se voltava. E havia tanta coisa dela que ele não sabia... Que ela dormia cedo e gostava de doce de abóbora; que ela mordia os lábios de tédio e lavava as calcinhas no banho; que ela nunca deixava comida no prato com medo de escassez e penteava os cabelos longos todo dia antes de dormir; e que ela já sentia saudade, tanta e muita, mesmo sem conhecê-lo bem. Mas seu corpo o conhecia. Fazer amor com outro corpo é a forma mais profunda de conhecer. E ver o cavalo dele pela janela ir ficando pequeno ao seguir a distância da estrada causou nela um aperto no peito. Dor. Como se o escuro da noite invadisse a manhã. Tudo era breu depois que ele sumiu na claridade. Mesmo toda a manhã, e todo o céu, e toda a luz... Nada iluminava. 

A vida eram dois pequenos cômodos de madeira com uma janela, de onde se via a estrada longa e, às vezes, alguém chegar ou ir embora. O coração era um espaço ainda menor e, mesmo assim, tão vasto, que cabia a estrada toda, porque talvez a estrada a levasse a ele. Mas ela mal sabia escrever o nome. Ficou ali pensando umas letras. A juntou com M, com O, com R... Será que era assim que se escrevia?

Percebeu que escrevendo podia senti-lo um pouco mais. A voz dele tocou seu ouvido. Era o sussurro da noite não dormida. Ele dizia “amor”, mesmo sem saber muito bem dela.

Distanciou os olhos do papel e ficou olhando na janela até me ver passar:

“Moça!” - ela me disse - “A senhora escreve?”

Pensei “Como ela sabe?”, mas quando olhei vi seu desespero na janela e compreendi que não falava de mim, estava só pedindo socorro. “Escrevo”, respondi.

Ela abriu a porta e me chamou com a mão. Estava tão triste, tão só, que todas as minhas palavras quiseram lhe fazer companhia. 

“Ele foi embora. Se eu não escrever, ele nunca vai saber.”

Fiquei ouvindo e ela continuou:

“O problema é que não sei escrever... Nem sei o endereço dele, nem o nome inteiro.”

Perguntei:

– Você sabe o que sente?

Saber o que se sente já é saber muito, pensei.

Ela assentiu com a cabeça e me trouxe outro papel e lápis. Pedi:

– Vai falando o que queria falar pra ele que eu escrevo!

Ela me falou rápido e escrevi como ela me dizia, sem corrigir nada, porque isso não se faz com verdades assim tão sérias. Depois ela enrolou o papel, amarrou uma fita de cetim e por fora pediu para eu escrever “Jão”. Perguntei se não era “João” e ela disse: “Não, é Jão mesmo! Jão, jagunço do Zé Caboclo”.

A carta viajou de mão em mão, andou em bolsos, malas, camisas, nada de chegar ao Jão. Ele viveu tanta coisa sem saber que a carta existia! Quase nem se lembrava mais dela. Aquela noite passada juntos, não dormida enlaçados um no outro era uma semente no passado que não tinha dado fruto algum. Jão dormia tantas vezes com mulheres que conhecia pelo caminho. Parece que ele viajou pra um lado e aqueles dizeres pra outro. A carta passava perto do rio, ele estava acampado no mato; a carta subia a montanha, ele atravessava lugarejo. Até que... 

Oito anos depois – e oito anos são toda a vida de uma criança que a altura chega na cintura! – alguém entregou pra Jão a carta, quase rasgada, mal dava pra ler. A fita desfiada, o papel sujo de terra, molhado de suor e chuva. Jão viu que era assinada por Meire. Forçou a vista, não pra ler, mas pra lembrar da cena, o rosto dela não vinha, mas foi só ler que tudo foi clareando. E o rosto, corpo, gosto dela parecia estar ali agora. Ficou pensando como se fosse a voz dela dizendo, falando aquelas coisas que a carta contava. Ele nem sabia, nem sonhava aquilo tudo. Ficou pensando no dia que ela escreveu, fazia já 8 anos aquele dia e parecia ontem. Imaginou Meire com saudade, saudade que ele não sentiu, mas sentia agora. Imaginou Meire sozinha no quarto escrevendo pra ele e chorando. Parecia que estava chorando, ele pensou. Mulher nenhuma tinha chorado por ele. E aquelas palavras todas tinham atravessado o tempo para encontrar seus olhos. Aquele papel tinha resistido ao sertão para tocar seus dedos... Na carta, Meire dizia:

Não sei seu nome intero, mas sei seu chero! Parece um vento que senti uma vez na estrada. Um chero fresco. Gostei quando mexeu no meu cabelo. A sua mão é um carinho que nunca recebi antes. É diferente do seu chero. É quente. Esquentou cada pedaço meu. Até drento! Eu nem falei que tava gostano para num estragar aquilo tudo lindo que ocê tava fazeno. Fiquei quieta. Ocê é como uma comida boa que a gente faz até silêncio pra comê, sentir o gosto direito. Depois que ocê chegou meu coração bateu diferente e inté agora tá assim. Eu queria gritar quando vi ocê ir embora daqui, mas minha voz num saía. Eu tava é com medo de ocê não ficá memo assim. E daí acho qui tá doeno inda mais. Tá doeno agora e parece que vai doer a vida toda sem ocê. É isso que é amor, né? Umas hora alegre de amor, e o resto da vida de dor. Vô ficá assim inté ocê voltá. Essa carta é pra te chamá pra cá de novo. Pra dentro de casa e pra dentro de mim. Meu amor tá aqui procê... E ocê, cadê?

Ele não sabia mais o caminho de volta. Será que era Barra Alta ou Serrado, era Rio Largo ou Garlhas onde ela morava? Se soubesse ia prá lá. Mas e se ela já tivesse casado, se já estivesse com outro? “Meire não ia esperar tanto”, pensou. “Era mulher bonita, jeitosa. Já tinha passado oito anos...”

Jão resolveu escrever. Se era uma carta que tinha acendido nele o amor, como se a tivesse amado aqueles dias todos, e meses e anos, também uma carta havia de chegar a ela, nem que pra isso fosse preciso mais 8 anos. Jão que tinha feito Meire viver de espera, queria viver ele a espera dela. Guardou a carta lida no bolso da calça e se apoiou na cela do cavalo para escrever uma resposta. Dobrou o papel e escreveu: “Para Meire, a da casa azul de Barra Alta.” 


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